Boa Tarde, hoje é dia 03 de Dezembro de 2024 |
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O direito de defesa e o processo penal.
José Carneiro Rangel Júnior. Advogado, Secretário da Comissão de acompanhamento da reforma do Código Penal da OAB/CE, Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Estadual do Ceará e Escola Superior do Ministério Público do Ceará, Professor de Direito Penal e Direito Processual Penal no Centro Universitário Christus e Faculdade Católica de Quixadá, sócio sênior no escritório Fonseca de Andrade e Rangel Advogados.
INTRODUÇÃO
Desde o início da vida em sociedade, os atos considerados anti-sociais já eram praticados. Podemos dizer que, com o surgimento dos seres humanos, passaram a existir também os primeiros delitos.
Sem adentrar a seara do sentimento movedor de tais condutas, bem como das relações sociais que permeiam o comportamento dos indivíduos, percebe-se que os crimes sempre trazem consigo, em interesse adverso ao de seus autores, a busca à sua repressão. Assim, observamos que, com o surgimento dos primeiros delitos, também se originaram o Direito Penal e o Direito Processual Penal, mesmo que de maneira rudimentar, com ausência de codificação. Deste modo, no direito antigo, a punição era realizada através da vingança – seja privada (daquele atingido pelo crime), divina ou pública, o que gerou inúmeras desavenças e ainda mais violência. Contudo, com o fortalecimento das relações sociais e do Estado, foram desaparecendo os grupos e clãs, cedendo lugar a um novo poder: o Poder Público ou Estatal, o qual passou a deter a capacidade de repressão às infrações, em detrimento da punição particular anteriormente exercida. Então, surgiram as primeiras codificações, o que não significou necessariamente justiça. Ao acusado não se fazia possível o uso da palavra, nem a possibilidade de demonstrar não ter sido o autor do crime, ou ainda, explicar o motivo de ter adotado tal conduta. Logo, visualizamos as inúmeras injustiças que aconteciam com a adoção desses tipos de procedimento.
No primeiro capítulo vamos discorrer sobre a evolução histórica do direito de defesa. No segundo capítulo falaremos sobre o sistema processual penal analisando-o sob o aspecto da evolução do direito de defesa no processo penal brasileiro. Finalmente, no terceiro capítulo vamos abordar a manifestação do direito de defesa, apresentando sua fundamentação tanto na Constituição Federal quanto no próprio Código de Processo Penal. 1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA: AS ORDÁLIAS OU JUÍZOS DE DEUS
Na era medieval, em que se fazia crer que o detentor do poder tinha investidura divina, reinava a tirania onipotente e sem necessidade de motivações e justificativas, o que originou diversas arbitrariedades: o acusado era submetido a provas cruéis para aferir a veracidade de suas afirmações – enquanto o juiz assumia-se Deus, que tudo sabe e vê, e a quem impendia o julgamento da verdade.
Assim, surgiram em nossa história as ordálias ou juízos de Deus, que foram adotados por quase todos os povos das civilizações antigas. Estas não eram consideradas meios de prova, mas uma devolução a Deus da decisão sobre a controvérsia. Na ordálias, os acusados eram submetidos a provas rudes, penosas, e algumas de caráter mortal, das quais deveria escapar com vida ou ilesos caso fossem inocentes. Como exemplo, podemos citar a prova das serpentes, na qual o imputado era colocado entre os répteis venenosos, acreditando-se que somente seria picado se verdadeiramente fosse criminoso. Muito curiosa, para não dizer estranha, era a denominada prova do cadáver, em que o acusado era colocado diante do corpo da vítima; se deste começasse a correr sangue, o réu era considerado culpado pelo homicídio. Também podemos citar o duelo como prova divina ou Juízo de Deus, fundado na crença de que Deus não deixaria sair vencedor o litigante que pleiteasse uma pretensão injusta. Considerando que os poderes religioso e político se imiscuíam, surgiu a Inquisição ou Santo Ofício, competente para julgar heresias praticadas contra a Igreja. Suas características, historicamente conhecidas, eram o absolutismo, a austeridade, o autoritarismo e a impossibilidade de defesa do réu. Afirmava-se inclusive que “se o réu era inocente, não precisava de defensor e, se culpado, era indigno de defesa” (Tourinho Filho, 2010, p.374). No processo inquisitório, o juiz, além de sua função específica de julgar, assumia ainda o encargo de acusar; na verdade, a ele tudo era permitido, inclusive suprir a atividade do acusado, o que tornava impossível um julgamento justo, visto que ausente um dos caracteres básicos do julgador; a imparcialidade. Ademais, o processo era secreto e a tortura era regulamentada, o que salienta a finalidade punitiva do processo, e não a busca da verdade e da justiça. A Inquisição, posteriormente, deu origem ao sistema processual inquisitivo, e passou a abranger não só os delitos de cunho religioso, mas todos os crimes. O juiz continuava a acumular as funções de julgar e acusar, embora já fosse permitida uma tênue defesa ao réu que continuava objeto do procedimento. De pronto, podemos concluir que o sistema inquisitório, com ritos secretos e tortura institucionalizada, servia para abafar verdades, livrar os autores de infrações que detinham poder e influência, além de penalizar inocentes. Portanto, diante das atrocidades cometidas pelo sistema inquisitório, o conceito de justiça que se fazia presente aos adeptos do direito natural foi voltando à tona. 2. O SISTEMA PROCESSUAL ACUSATÓRIO
Vislumbrou-se a necessidade de dosar a pena numa medida adequada, com natureza preventiva e retributiva, sem retirar do réu o seu direito natural de defesa. A punição vinha atrelada à idéia de defesa social e prevenção. Fernando de Almeida Pedroso, citando os ensinamentos de Santo Agostinho, afirma que “merecedor de combate era o erro em si, e não o homem que erra” (2001, p.24), de modo que novas concepções e ideologias foram encontrando espaço, chegando à conclusão de que o sistema processual adotado era fundado em falsas bases.
Passou-se a reconhecer ao réu o direito de defesa, passando este a influenciar o procedimento investigatório, deixando de ser apenas simples objeto de averiguações. Eugênio Pacelli separa o sistema inquisitório do acusatório na titularidade atribuída ao órgão de acusação, “inquisitorial seria o sistema em que as funções de acusação e de julgamento estariam reunidas em uma só pessoa (ou órgão), enquanto o acusatório seria aquele em que tais papéis estariam reservados a pessoas (ou órgãos) distintos.” (2013, p.10) Assim, começa a existir então o sistema processual acusatório, o qual desconcentrou os poderes das mãos de uma só pessoa – o juiz – para distribuí-los a três órgãos distintos: acusação, defesa e juízo. Portanto, tem origem o processo de partes, em que os interesses da acusação e da defesa são coordenados, ressaltando a imparcialidade e independência do juiz na procura da verdade – o objetivo do processo. Pois bem, com o sistema acusatório, o direito de defesa passou a ser reconhecido, visto que através dele o acusado poderá provar sua inocência, lançar dúvidas sobre sua culpabilidade e apresentar fatos e justificativas que a abonem. Contudo, mesmo caracterizado como acusatório, em face do exposto acima, é importante ressaltar que é possível detectar alguns resquícios do sistema inquisitório. O professor Eugênio Pacelli de Oliveira critica: Nenhum tribunal até hoje se levantou contra a mutatio libelli do art. 384 do CPP, no qual se permite uma alteração substancial da peça acusatória, a partir de fatos e/ou circunstâncias que o juiz considere provados na instrução criminal. Assim, uma nova acusação é formulada pelo próprio juiz, com a agravante de já significar uma antecipação da valoração que ele estará fazendo do material probatório já produzido. Veja-se: “se o juiz reconhecer a possibilidade de nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos [...] (art. 384, CPP)” (Curso de Processo Penal, p.09)
Percebe-se também uma ampla liberdade do juiz no campo do ônus da prova, freqüentemente legitimada pelo princípio da verdade real. Porém, sabemos que os princípios não têm aplicação absoluta, e devem ser utilizados de modo a alcançar a maior efetividade possível, considerando as possibilidades fáticas e jurídicas existentes, visto que são mandamentos de utilização, diferentemente das regras, que devem ser cumpridas na medida de sua prescrição, afastando o que com elas for incompatível.
Por isso, no caso concreto, falamos de colisão desses princípios, que deve ser resolvida com base num juízo de ponderação. Assim, em contraposição ao princípio da verdade real, temos o princípio da presunção de inocência do réu, bem como a imparcialidade do julgador e o juiz natural. Então, deve ser feita uma avaliação do que seria mais benéfico e relevante – interesse público, dignidade da pessoa humana, presunção de inocência, interesse da sociedade - para que seja tomada a decisão. Em suma, o princípio da verdade real, como regra e utilização na medida do possível que é, não pode impor a ferro e fogo prescrições que atentem contra os princípios referentes à temática dialética do processo, bem como àqueles inerentes à dignidade da pessoa humana. Corroborando com esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela impossibilidade de o juiz poder requisitar de ofício novas diligências probatórias, quando o Ministério Público manifestar-se pelo arquivamento do inquérito. A violação ao sistema acusatório era patente. Logo, de acordo com a Constituição vigente, ressalta-se no processo penal o princípio do juiz natural e de sua conseqüente imparcialidade. Pois se o processo deve se desenvolver com igualdade das partes, só é possível vislumbrá-la quando não se permitir ao juiz uma função substitutiva da atuação ministerial, em seus diversos desdobramentos. 3. MANIFESTAÇÃO DO DIREITO DE DEFESA
Cometido um fato que a lei penal define como crime, o Estado, primando pela paz e ordem públicas, inicia a persecução penal contra o seu autor. Observamos que, após o período humanístico, a pena a ser aplicada deve ter natureza preventiva, desencorajadora de outras condutas similares, bem como retributiva, para que corresponda à gravidade do delito praticado pelo acusado.
Então, surge o direito de ação por parte do órgão acusatório, cuja demanda é destinada a atuar na esfera pessoal de outrem. Logo, evidente que o réu tem o direito de se opor a que a pretensão do autor venha a atingir a esfera jurídica de seus interesses, utilizando-se também da tutela jurisdicional. O direito de defesa é mais do que a figuração do réu no processo, consubstancia-se em uma faculdade de opor-se à imputação que lhe é atribuída, através da qual o acusado poderá efetivamente influir no deslinde da questão, criando situações processuais com o objetivo de alcançar uma sentença favorável. Sabendo que o réu será afetado diretamente em seu direito à liberdade e também em sua dignidade e vida pela sentença penal, é direito deste contrariar aquilo que contra si é aduzido no procedimento estatal ou levantar-se contra eventuais irregularidades deste. Contudo, o direito de defesa só atingiu esta dimensão após protestos de muitas personalidades célebres que, indignadas com o sistema histórico que transformava o réu em simples objeto de arbitrariedades, lutaram para que se reconhecessem os direitos humanos que lhes eram devidos. Como nos ensina Fernando de Almeida Pedroso essa conquista não foi alcançada desacompanhada de força: “...prova disso tem-se na Revolução Francesa – tida como um dos marcos históricos - e na Declaração dos Direitos Individuais que lhe foi subseqüente” (2001, p.28). Na verdade, o direito de defesa, como pontua perfeitamente José Frederico Marques: [...] em sua significação mais ampla, está presente em todos os preceitos emanados do Estado, como substractum da ordem legal, por ser o fundamento primário da segurança jurídica na vida social organizada...é essencial à plena defesa que não se rebaixe o indiciado à condição inferior de simples material de investigações (apud Pedroso, 2001, p.29).
A garantia de ampla defesa, presente na Carta Magna como direito fundamental, é a repulsa à acusação ou a antítese desta: é a contraposição que o réu apresenta aos motivos e razões em que se baseia a acusação. É o direito que possui o acusado de rechaçar tudo que lhe é imputado.
Então, como direito paralelo e contraposto ao direito de ação, possui as mesmas características desse último. Sem termos a pretensão de aprofundar a temática processual referente à natureza jurídica do direito de ação, tema por demais extenso e rico, escapando ao objetivo do presente trabalho, faremos rápida explanação acerca de suas características, quais sejam: é direito público, subjetivo, autônomo e abstrato. É direito público visto que tem como objetivo a prestação da tutela jurisdicional, e isto é feito através do Estado (Poder Público), mediante a apreciação do Poder Judiciário. Tem caráter subjetivo porque não é um dever imposto ao acusado, mas uma faculdade. Convém observar que a ausência de defesa não é admitida, pois mesmo que o acusado seja revel, há de lhe ser nomeado defensor. Obviamente que a opção por não colaborar com a defesa poderá trazer prejuízos à efetividade desta, sendo a faculdade onerosa. Entretanto, o réu não poderá ser obrigado a comparecer a um ato processual, por exemplo. É considerado autônomo porque o seu exercício independe de o acusado possuir efetivo direito que o socorra. Não é preciso que o réu esteja com a “razão” para que possa defender-se. Basta que tenha contra si ajuizada uma demanda processual para o exercício do direito em tela. Daí também se explica o fato de ser abstrato: não depende de direito concreto para que a parte ré obtenha provimento judicial que lhe seja favorável. Importante salientar que, há diferenças significativas nesse paralelismo entre os direitos de ação e de defesa no processo civil e no processo penal. Naquele, a ação poderia ser exercida, em regra, tanto por uma como por outra parte – ambas poderiam figurar no pólo ativo da demanda. No entanto, no processo penal, só o Estado ou o ofendido podem ser autores: o indigitado deve, necessariamente, figurar no pólo passivo. Quando ocorre um delito, o Estado, através de seus instrumentos repressivos, deverá buscar a verdade real para a concretização da devida tutela jurisdicional: a pena deverá ser aplicada na medida correta e destinada à pessoa verdadeiramente culpada. Através da descoberta da verdade, chega-se também ao meio e modo de incidir a norma penal a ser aplicada ao caso. Logo, se a verdade real, caso trazida ao processo penal, enseje eventual sanção ao acusado, este tem o direito de ser ouvido e de atuar para a demonstração dessa verdade, ou para dificultar a sua manifestação, caso isto lhe seja mais proveitoso. Portanto, como essa verdade traz conseqüências irremediáveis à vida da parte acusada, só será válida se construída num diálogo entre as partes processuais. Ademais, em vista do princípio da isonomia, ao réu confere-se o direito de atuar probatoriamente, em face do que alega, em igualdade de condições com o órgão acusatório. Não fosse assim, o direito de defesa seria apenas mera formalidade. A nossa Carta Magna, em seu art. 5º, inciso LV, dispõe que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Na verdade, é impossível conceber um processo justo e equânime sem a presença desses dois princípios, basilares para a nossa dialética processual, visto que derivados do princípio processual soberano, qual seja, o devido processo legal, o qual representa além de um direito, uma garantia. Na doutrina, podemos encontrar dois posicionamentos acerca do relacionamento entre as garantias da defesa e do contraditório: a) o direito de defesa deriva da garantia do contraditório; ou b) da garantia de defesa decorre o contraditório. Não se pode dizer, contudo, que entre a defesa e o contraditório existe relação de primazia ou de derivação, ou seja, prevalência de um em detrimento do outro. Ao contrário, para Antônio Scarance Fernandes: “defesa e contraditório estão intimamente relacionados e ambos são manifestações da garantia genérica do devido processo legal”. (2005, p.281). Grinover, Scarance e Magalhães ensinam que: [...] a Constituição eleva a nível constitucional os direitos de ação e defesa, face e verso da mesma medalha. E mais: dá conteúdo a esses direitos, pois não se limita a permitir o acesso aos tribunais, mas assegura também, ao longo de todo o iter procedimental, aquele conjunto de garantias constitucionais que, de um lado, tutelam as partes quanto ao exercício de suas faculdades e poderes processuais e, do outro, são indispensáveis ao correto exercício da jurisdição: trata-se das garantias do devido processo legal (2011, p.76).
Por conseguinte, para que o processo penal seja válido, há de ser contraditório, bilateral, de modo que o acusado tenha a oportunidade de provar sua verdade em juízo ou entravar a produção da verdade real; ofertar sua versão dos fatos ou em nada contribuir para que se descubra o realmente ocorrido.
Destarte, em atenção ao desenvolvimento válido do processo, o acusado deve ser ouvido. Todavia, diante das possibilidades que dispõe, este pode optar pelo silêncio. Convém ressaltar que permanecer em silêncio diante das indagações que lhe são endereçadas não é uma atitude vantajosa para o acusado. Afinal, pressupõe-se que uma pessoa inocente, quando indiciada, protesta e quer explicar sua versão para os fatos. Assim, o silêncio não deve ser interpretado como presunção de inocência. Entretanto, é um direito que assiste ao réu, e as razões que o levaram a agir dessa maneira talvez justifiquem a adoção de tal conduta. Se anteriormente o silêncio não obstava ao juiz um convencimento adverso com relação ao acusado, influenciando a convicção do julgador, hoje, com a nova redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º de dezembro de 2003, o art. 186 e seu parágrafo único do Código de Processo Penal têm a seguinte redação: Art. 186 - Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder às perguntas que lhe forem formuladas.
Parágrafo único – o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.
Assim, cai por terra a afirmação de que a opção pelo silêncio não inviabiliza o convencimento judicial no sentido desfavorável ao réu, outrora freqüente na doutrina e na jurisprudência.
Desse modo, mesmo com utilização de um Código de Processo Penal muito criticado por sua rigidez e falta de modernização (convém ressaltar que o referido códex data de 1941), o qual fala do interrogatório como meio de prova, está consubstanciado na doutrina atualmente, que o interrogatório constitui meio de defesa: meio de contestação da acusação e instrumento para o acusado expor a sua própria versão. A nova redação do artigo 186 do Código de Processo Penal, bem como a inclusão no citado dispositivo do parágrafo único, só veio a corroborar o preceito do artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição federal de 1988, que veda expressamente a interpretação do silêncio em prejuízo do acusado ou como confissão. Assim, com o advento da Lei nº 10.792/03, ficou expressamente ressalvado no diploma processual penal o direito ao silêncio, que, apesar de estar há muito garantido constitucionalmente, ainda resistia de forma residual no Código de Processo Penal um artigo que permitia a interpretação do silêncio em desfavor do acusado. Saliente-se, por oportuno, que o direito ao silêncio só pode ser exercido no interrogatório de mérito, e nunca no interrogatório de qualificação, previsto no novo artigo 187 do Código de Processo Penal, antigo artigo 188, do CPP. A recusa do acusado em prestar informações no interrogatório de qualificação constitui prática de contravenção penal, concernente na recusa de dados sobre a própria identidade ou qualificação, e prevista no artigo 68 da Lei de Contravenções Penais, Decreto-Lei nº 3.688/41. Art. 68, LCP. Recusar à autoridade, quando por esta justificadamente solicitados ou exigidos, dados ou indicações concernentes à própria identidade, estado, profissão, domicílio e residência:
Pena – multa
Parágrafo único. Incorre na pena de prisão simples, de 1 (um) a 6 (seis) meses, e multa, se o fato não constitui infração penal mais grave, quem, nas mesmas circunstâncias, faz declarações inverídicas a respeito de sua identidade pessoal, estado, profissão, domicílio e residência.
Primeiramente, convém salientar que defesa técnica e autodefesa são dois aspectos da defesa no processo penal.
A defesa técnica, conforme exige o texto constitucional, é indispensável, necessária, na medida em que, mais que uma garantia do acusado, é condição do efetivo exercício do contraditório. Ademais, é também um direito, e assim pode a parte acusada escolher o defensor de sua confiança. A defesa técnica é essencial para garantir a isonomia. Em regra, temos um Ministério Público composto de membros altamente qualificados, contando também com uma polícia judiciária especializada. Assim, no outro lado da lide processual, deve estar o réu amparado por profissional habilitado, ou seja, por advogado, público ou particular. A própria Constituição Federal considerou o advogado indispensável à administração da justiça e estruturou as Defensorias Públicas. Por isso, o Código de Processo Penal, em seu art. 261, assevera que “nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”. Caso o réu não constitua advogado, obrigatoriamente lhe será nomeado defensor pelo juiz. Logo, se o processo se desenvolve sem defensor, estará irremediavelmente nulo. Importante salientar que essa defesa técnica deve ser efetiva. O fato de ter o réu defensor constituído ou nomeado não é suficiente. É necessário que o advogado, no decorrer do processo, tenha dispensado efetiva assistência ao acusado, sob pena de configurar falta de defesa. Por isso, a lei 10.792, de 1º de dezembro de 2003, acrescentou parágrafo único ao art. 261, ao Código de Processo Penal o qual transcrevemos: Art. 261. Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor.
Parágrafo único – a defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada.
De nada adiantaria nomear advogado nos autos se este não participasse dos diversos atos, ou atuasse de maneira deficiente, pautada pelo descaso.
Com o objetivo de se garantir defesa efetiva, também não se vislumbra a possibilidade de admitir um mesmo advogado para patrocinar em juízo a defesa de dois réus no mesmo processo, com teses antagônicas. Pelo menos um deles sairá prejudicado. Ao defensor, caso isso ocorra, cumpre recusar a nomeação única, alertando o juízo quanto à impossibilidade de realizar defesa com eficiência, visto que os acusados têm interesses conflitantes. Visando também à eficiência da defesa, o art. 185, parágrafo quinto, do Código de Processo Penal articula que: Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. (...)
§ 5º em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por vídeo conferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para a comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do fórum, e entre este e o preso.
Assim, o advogado poderá orientá-lo sobre o direito de permanecer em silêncio ou da possibilidade de responder às perguntas, e resolver a tese mais vantajosa a ser adotada pela defesa. Desse modo, esta entrevista prévia servirá de orientação ao defensor, pois fornecerá a este os elementos para solicitar ao juiz, durante o interrogatório, o esclarecimento de algum fato.
Como desdobramento do direito à defesa técnica, o acusado tem direito de escolher o seu advogado, já que a relação entre os dois deve ser de confiança. O réu pode indicar o advogado no interrogatório ou por procuração. O juiz não pode nomear outro defensor sem antes ouvir o acusado. Caso o defensor deixe de realizar atos de sua alçada, o juiz deve intimar o réu para que constitua novo advogado, e caso este não o faça, então o juiz poderá nomear causídico para defendê-lo. Tratando-se de defensor nomeado, nos termos do art. 263 do Código de Processo Penal, o acusado tem direito, a qualquer tempo, de constituir outro de sua confiança. Além da defesa técnica, também tem fundamento constitucional a garantia da autodefesa, ou seja, aquela exercida pelo próprio acusado quando da realização de certos atos processuais. O direito à autodefesa é renunciável, na medida em que o réu não é obrigado a comparecer às audiências, por exemplo. Obviamente, esta faculdade é do acusado, não podendo o juiz simplesmente dispensar esse direito, sob pena de significar sacrifício para toda a defesa e, por conseguinte, nulidade absoluta ou relativa, conforme o caso concreto. A autodefesa é composta de dois aspectos: o direito de audiência e o direito de presença. O primeiro é exercido no momento do interrogatório, em que o réu tem a oportunidade de, pessoalmente, apresentar ao juiz da causa sua versão para os fatos e sua conseqüente defesa. Com o advento da Lei nº 11.719/2008, o interrogatório do acusado passou a ser o último ato da instrução processual e não mais o primeiro, passando a ser verdadeiro meio defesa. Na lição de Paulo Rangel “O interrogatório, de acordo com a Lei nº 11.719/2008, passa a ser um verdadeiro meio de defesa, pois o réu é ouvido após a oitiva das testemunhas de acusação e defesa.” (2012, p.547) Pode ocorrer de o acusado não ter sido interrogado no momento apropriado. Então, caso seja preso no curso do processo ou compareça, espontaneamente ou em virtude de intimação, perante a autoridade judiciária, deve ser interrogado, sob pena de nulidade. Se o réu for preso em fase de recurso e a notícia chegar ao Tribunal, este deverá baixar os autos para que seja realizado o interrogatório antes do julgamento. O segundo aspecto da garantia da autodefesa é o direito de presença, meio pelo qual o acusado tem a oportunidade de, ao lado do seu advogado acompanhar os atos de instrução, podendo se posicionar diante de alegações e provas produzidas, auxiliando-o na realização da defesa. Antonio Scarance Fernandes, além desses dois aspectos apreciados pela maioria da doutrina, acrescenta um terceiro - o direito de o réu postular pessoalmente, em sua própria defesa: pode interpor recursos, impetrar hábeas corpus, formular pedidos relativos à execução da pena, como o pedido para a progressão do regime. Constituem hipóteses em que o acusado ou o sentenciado dá, através de seu ato, o impulso oficial ao recurso, ao procedimento incidental, mas, logo em seguida, deve-se lhe garantir a assistência de defensor. (2005, p.294)
Em síntese, a defesa técnica e a autodefesa constituem aspectos da garantia constitucional da ampla defesa, motivo pelo qual a sua não observância redundará em nulidade.
CONCLUSÃO
No processo penal, para que seja proferida uma sentença condenatória, deve haver certeza da existência do delito, e de que o acusado é o seu autor. Não se opera com possibilidades quando está em jogo a liberdade de um ser humano.
O livre convencimento do juiz é motivado, e essa motivação deve ser concreta, sob pena de recairmos no arbítrio. A íntima convicção do juiz, quando desacompanhada de provas objetivas de sua justificação, não configura certeza, motivo pelo qual não poderá fundamentar uma condenação. Por isso, o acusado pode agir, no exercício do seu direito de defesa, de modo a lançar dúvidas sobre o fato que lhe é imputado na denúncia, visto que a dúvida é sempre proclamada em seu benefício. Pelo mesmo motivo não cumpre ao réu apresentar prova plena, pois a prova insuficiente também lhe trará o benefício da dúvida. Obviamente, esse princípio só poderá beneficiar o acusado quando as provas constantes dos autos se dividam, ou seja, inclinem-se para as duas versões oferecidas, gerando incertezas quanto à acolhida de uma delas. Se não fosse assim, bastaria que a parte ré alegasse o que quisesse, desde que não houvesse provas. É preciso que o réu também apresente suas provas. Além de aplicado nos casos de absolvição, o non liquet também deve ser observado quando da condenação. Assim, havendo dúvidas sobre a menor ou maior gravidade do fato praticado pelo acusado, a sentença condenatória deve optar pelo que constitui fato menos grave, fixando a solução mais favorável ao réu. Exemplificando, se há dúvida se o crime foi doloso ou culposo, deverá o réu ser condenado por este, o qual é menos grave.
Assim, o direito de defesa, antes inexistente, evoluindo até os dias atuais como postulado a ser observado em qualquer legislação a ser elaborada é, sem sombra de dúvida, garantia das mais relevantes na preservação da vida e dignidade do individuo frente à sociedade e ao jus puniendi estatal, assegurando a todos, além dos valores já mencionados, a segurança jurídica fundamental para a salvaguarda das relações sociais existentes. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
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BRASIL. Lei nº 10.792 de 01º de dezembro de 2003. Altera a Lei nº 7.210 de 11 de junho de 1984 – Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei nº 3.689, de 03 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, 02 de dezembro de 2003.
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